John Berger (1926-2017) foi um crítico de arte, pintor e escritor inglês, sendo hoje considerado um ícone da contracultura ao cruzar a prática artística com a reflexão sobre arte.
Foi através do programa Ways of Seeing, transmitido pela BBC em 1972, que o seu trabalho veio a obter reconhecimento público generalizado. Nesta série de quatro episódios, Berger percorre vários capítulos da história da arte universal, com foco no Ocidente, aludindo a questões ideológicas e novos “modos de ver” as criações artísticas. Em 1990 ele adaptou a série a um livro de 176 páginas, o qual foi publicado pela primeira vez em Portugal em Outubro de 2018.
Modos de Ver apresenta-se pela mesma lógica da série da BBC. Embora composto por sete ensaios numerados sequencialmente, pode ser lido sem qualquer sequência. Os ensaios, repletos de observações, indagações e comentários, questionam o leitor acerca do paralelismo entre a posse de um quadro e a posse do que nele se representa, bem como a omnipresença de imagens através da publicidade ou as representações do género e dos papéis que a ele são associados. Modos de Ver pretende invocar inquietações e discussões sobre o modo como olhamos para a arte, seja um quadro, uma escultura ou uma imagem. Ao questionar-se sobre a existência do abstrato na arte sem qualquer presença de um contexto histórico, social e cultural, Berger apresenta diversas questões que provam o contrário: do capitalismo à elite histórica que ofusca a história da arte ou aqueles que defendem interpretações superficiais dessas obras de arte.
Escrito de forma intimista, este livro gira em torno dos modos pelos quais os espetadores leem e se relacionam com as imagens, levando o leitor a envolver-se na discussão. Berger inicia Modos de Ver com a observação “Ver vem antes das palavras. Mesmo antes de saber falar, a criança olha e reconhece” (p. 17); abordando de seguida como a perceção constante do mundo desde o nascimento, nomeadamente as coisas que vemos, tornam a linguagem insuficiente para transmitir a forma de ver o mundo. Berger assume a presença de códigos ideológicos em todas as imagens, quer estes sejam conscientes ou não. Explica também, através dessa premissa, como as imagens têm camadas de significado que vão além da superfície.
Ao longo deste primeiro ensaio, Berger baseia-se bastante no trabalho de Walter Benjamin, referindo vários conceitos-chave do seu ensaio A Obra de Arte na Época da Sua Reprodutividade Técnica (The Work of Art in the Age of its Technological Reproducibility, de 1935), para explicar a mudança de significado das imagens através da reprodução. Baseando-se em Benjamin, Berger argumenta que as reproduções impactam as imagens ao trazer novos contextos e ao abrir novas possibilidades de interpretação. Este é por isso o princípio fulcral do primeiro ensaio: a forma como a reprodução muda o significado das imagens, quebrando as narrativas que procuram estabilizar a compreensão dos significados.
O segundo ensaio do livro recorre apenas a imagens, aparecendo o texto apenas de forma esporádica. Neste ensaio é apresentado um tema recorrente: as mulheres. Estas aparecem em pinturas e fotografias, aparentemente diversificadas em termos de cenários e tempos. Berger nunca explicita as conexões possíveis entre essas imagens, deixando esse relacionamento em aberto para o leitor.
No terceiro ensaio, Berger elucida a relação entre as imagens de mulheres referidas no ensaio anterior. Berger começa por observar a diferença de representatividade, nas imagens e na sociedade em geral, entre homens e mulheres. As mulheres, acrescenta, vivem numa constante monitorização da sua auto-apresentação, descrevendo também que “os homens agem e as mulheres aparecem” (p. XX). Essa relação é especialmente perceptível através de certas pinturas a óleo europeias que retratam a figura feminina nua, sendo a sua nudez constituída para o espectador (presumivelmente) masculino. As mulheres pintadas de forma a exibir a sua sexualidade são acusadas de vaidade pela associações simbólicas como os espelhos. Embora na atualidade a realidade seja diferente, certos aspetos permanecem: enquanto os homens usufruem de uma infinidade de representações, as mulheres continuam a ser representadas como passivas ou como alguém cuja única função de existência é despertar o prazer masculino. Berger refere que todo o sistema existente de relações de género é fundado em hipocrisia, sendo o espectador (masculino) um indivíduo subjetivo que nega ao sujeito (feminino) individualidade.
O quarto ensaio é novamente puramente visual. Porém, contrariamente ao terceiro, as suas imagens não aparentam qualquer relação. É de notar que todas as imagens apresentam pinturas a óleo ou fotografias com pinturas a óleo nela, criando inúmeras conexões em aberto para o leitor.
Seguindo o padrão apresentado nos segundo e terceiro ensaios, o quinto adiciona um novo contexto que permite ao leitor entender as imagens do ensaio seguinte. Centrando-se numa tradição europeia de pintura a óleo, entre 1500 e 1900, Berger refere a capacidade realista e tangível de pintar os objetos numa lógica capitalista, onde a posse e o materialismo se tornam a ambição principal da arte. Assim, a pintura a óleo acaba por glorificar a riqueza e poder da classe alta, influenciando a relação que o capital tem nas relações sociais. Berger refere ainda o esforço e dedicação necessários de uma vida inteira para na arte alguém ser considerado ”grande artista”. Rembrandt é um exemplo deste esforço e dedicação, embora Berger procure nele um significado mais profundo do que o materialismo.
O sexto ensaio é também composto apenas por imagens, bastante diversas, que embora não partilhem de uma conexão óbvia fazem referência a temas que vão desde a conquista colonial a retratos pintados a óleo de súbditos ricos, ou de cenas domésticas a pinturas históricas e fotografias de crianças. Neste capítulo Berger incentiva o leitor a criar a sua possível relação entre imagens aparentemente tão distintas.
No sétimo e último ensaio, Berger analisa o fenómeno do bombardeamento de imagens e mensagens visuais que surgiu com a chamada propaganda ou “imagem publicitária”. Para o autor, as imagens publicitárias pertencem ao instante mas nunca se referem ao presente. Ao invés, referem-se a um não-acontecimento, estendendo-se até onde nada ocorre, como um futuro sempre adiado ou uma imagem de nostalgia do passado. Berger apresenta assim a publicidade como um processo de fabrico do glamour, que cria em torno do espetador um sentimento de inveja a hipotéticas versões futuras de si apelado a que essas versões se tornem realidade ao comprar um determinado produto. Nesta noção de glorificação do materialismo, tal como abordado no quinto ensaio, os anúncios abordam-se da mesma forma que as pinturas a óleo, já que celebram acima de tudo a propriedade privada dos objetos. Porém, contrariamente às pinturas a óleo, vistas apenas pelas classes altas, os anúncios chegam a um público muito superior. Através dessa análise final, Berger apresenta as imagens publicitárias como a fonte de poder das imagens contemporâneas, nas quais a questão da ideologia subjacente das imagens permite que a importância da imagem persista no nosso tempo.Berger estava bastante à frente do seu tempo. É por isso clara a pertinência de Modos de Ver na sociedade atual: uma obra intemporal, que se manteve atualizada ao prever como a cultura visual iria evoluir em paralelo com a tecnologia. Modos de Ver, por vezes só com imagens, desafia-nos a ir mais longe na análise e nos modos como vemos a arte, podendo ter uma visão mais crítica do que nos rodeia.
Recensão de:
Constança Camões Gouveia
Licenciatura em Design de Comunicação, FBAUL
Disciplina: Estudos em Design, 2022-23